segunda-feira, 9 de junho de 2008

O Imaginário Escravista e a Formação de uma Nação

Esta resenha busca analisar a abolição da escravidão tanto na Europa quanto no cenário norte-americano, além de suas correntes ideológicas e outros recursos utilizados tanto por escravistas quanto por abolicionistas, assunto este contemplado no artigo intitulado “Escravidão e Razão Nacional”, de José Murilo de Carvalho, publicado na revista Dados de Ciências Sociais.

Em tal obra, José Murilo de Carvalho - professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui graduação em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (1965), mestrado em Ciência Política - Stanford University (1969) e doutorado em Ciência Política - Stanford University (1975), pós-doutorado em História da América Latina na University of London (1977) - contrasta claramente a mentalidade expressa através dos discursos e das políticas implementadas pelas colonizações européias – especialmente a portuguesa – e o anseio crescente por um rompimento com este pacto vigente. O autor mostra, dessa forma, que enquanto os abolicionistas se sustentam nos argumentos religiosos ou filosóficos – violação do princípio da liberdade individual –, as motivações políticas predominam na tradição luso-brasileira. Esta movida pela razão colonial, aquela era conseqüência de uma razão nacional, na qual a liberdade deixava de ser individual para ser uma res publica.

É evidente ao longo do artigo a intenção em mostrar a formação da consciência nacional especificamente no Brasil pós-independência, utilizando-se, assim, uma contextualização destas correntes de pensamento na Europa da época, de maneira a corroborar com sua abordagem.

Dessa forma, o autor inicialmente analisa a importância das manifestações quakers contra a escravidão em meados do Seiscentos nos Estados Unidos e na Inglaterra, sendo estas as principais fontes do abolicionismo – entendido por ele não como políticas de governo, mas como correntes de opinião e movimentos sociais –. Tal movimento rompe com o tradicionalismo religioso, afirmando que os pecados advinham da existência da escravidão.

Aliando este ataque a outros de cunho mais coletivo - como o movimento do Grande Despertar - o professor monta a atmosfera abolicionista de maneira evidente, reforçando a conotação tanto religiosa, quanto filosófica, esta essencial no que tange a concepção de liberdade como um “direito natural inalienável” (p. 38), tal conceito, inserido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e na Declaração de independência dos Estados Unidos, serviu como um argumento de grande valia para os abolicionistas. A vertente econômica, que procurava mostrar que o trabalho escravo era menos lucrativo que o trabalho livre, não deixa de ser mencionada, entretanto, os argumentos religioso e filosófico – e o seu individualismo – são abordados de maneira predominante.

A seguir, Carvalho contrasta toda esta efervescência ideológica com a tradição luso-brasileira, que quase não recebe estas influências. Neste período, demonstra que na colônia portuguesa, a discussão referente ao problema da escravidão era num viés religioso, realizada basicamente por párocos, em que se verificava uma ambigüidade devido à interligação, às necessidades afins entre a Igreja e o Estado. O professor remonta o discurso utilizado pela Igreja para justificar a escravidão no Brasil, citando os exemplos do padre Antônio Vieira - que, em 1680 já aconselhava os escravos à obediência como forma de alcançar a Deus, ao mesmo tempo em que reconhecia a forma brutal em que eram tratados -, do jesuíta Benci, além de mencionar o livro do padre Manuel Ribeiro da Rocha que recomendava uma solução intermediária para resolver o problema: A substituição do comércio de escravos pela compra do direito de penhor e redenção, ou seja, até que o escravo pudesse repor o valor de seu resgate.

Carvalho reafirma, assim, a incapacidade de propor uma solução mais radical à escravidão justamente por o clero estar arraigado aos interesses do reino: da razão colonial, esta totalmente presente na obra de Azeredo Coutinho, justamente porque este atuou nas esferas política, como senhor de engenho em Campos, além de haver se tornado clérigo posteriormente. D. José, em seu texto, combate a idéia iluminista do direito natural. Para ele, o pacto social não existe, à medida que “o homem nasce em sociedade e dela derivam seus direitos” (p. 45). Sendo assim, rompe com a idéia de liberdade do homem como direito natural absoluto, defendendo que esta estaria sujeita às necessidades sociais. O professor faz uma analogia formidável de D. José com Hobbes que, apesar deste aceitar o individualismo, sua idéia de coletivo como a figura do Leviatã corrobora com a de Coutinho.

A construção deste processo brasileiro proposto por José Murilo chega ao seu ápice no momento da independência, em que o autor analisa a substituição de necessidades, outrora coloniais e neste momento, nacionais. A escravidão neste contexto ameaçava a unidade de um país em formação. José Bonifácio apresenta, assim, o primeiro discurso organizado contra a escravidão logo após a independência, sustentando-se, além da razão nacional, na razão cristã e na filosófica como reforço de sua ideologia de modelo quaker, impregnado da visão iluminista de progresso, de liberdade individual.

Contudo, Bonifácio não discute propostas bruscas de abolição, pois seriam inviáveis, mas sugere um processo gradual de eliminação deste mal nacional e o triunfo posterior da razão. Tal assertiva pode ser comprovada mesmo pela Constituição brasileira de 1824, na qual a escravidão quase não é mencionada, apenas no capítulo IV, artigo 94, relativo às eleições, em que são citados os libertos. Com esta exceção, a Constituição adquire um caráter extremamente liberal, revelando as tendências à época da independência.

José Murilo segue seu artigo demonstrando que as perspectivas de Bonifácio acerca da abolição não repercutiram muito no Brasil até meados do Oitocentos. Sociedade ainda de escravistas, visualizavam nos argumentos de D. José e, posteriormente, de Alencar um incentivo para o tráfico e a manutenção da ordem vigente.

Um dos principais pontos do texto de Carvalho – senão o mais importante – consiste nesta oposição entre as idéias abolicionistas propagadas no Brasil por José Bonifácio e por Joaquim Nabuco - que vive um momento político mais decisivo, mas, entretanto, estrutura-se no primeiro - e a mentalidade ainda colonial, refletida na visão de D. José e de Alencar, que aos poucos foi perdendo espaço para uma necessidade de segurança, de manutenção de uma sociedade homogênea, de modo em que os valores iluministas pudessem funcionar e que a nacionalidade brasileira fosse construída efetivamente, de acordo com o interesse de todo o país: de livres a escravos.

José Murilo, conforme demonstrado, consegue sustentar todos os seus pontos levantados, através de uma discussão historiográfica organizada de forma que o autor se utiliza brilhantemente dos pontos contrários às suas perspectivas, convertendo-os em recursos para a corroboração com suas hipóteses. Sua obra, desse modo, consiste num documento imprescindível para qualquer estudo atual sobre escravidão no período do Brasil imperial.

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