segunda-feira, 9 de junho de 2008

As diferentes inserções no tempo: de Tucídides a Ranke

No mundo moderno, o tempo é naturalizado, já que constitui a base para as tarefas do cotidiano. Dessa forma, o caráter de construção humana é obliterado, gerando, por vezes, a idéia de que o tempo domina as ações dos indivíduos. Justamente por essa naturalidade no tratamento do tempo, as formas nas quais os homens vêem suas vidas são tratadas da mesma maneira. Suas vidas estão divididas entre o passado, o presente e o futuro, em uma temporalidade em que não dominam. Ou seja, o tempo, como uma entidade supra-humana, divide a forma como os indivíduos enxergam suas vidas. E é exatamente através dessa divisão dita como comum que se pode perceber a característica ontológica do tempo, o quanto às ações humanas podem delimitar o que se entende como passado, presente e futuro.

Santo Agostinho fora o primeiro a desnaturalizar as concepções do que é o tempo, separando o divino daquilo relativo ao homem. A eternidade estaria para o divino assim como o tempo está para o homem; se para Deus há uma noção de um perpétuo hoje, sem um amanhã ou ontem, para os homens esse hoje não existe, existindo sim a perspectiva do amanhã e a sombra do ontem. A partir disso, Sto. Agostinho estabelece que o presente é sempre colocado em função de um passado ou sobre a perspectiva futura, nunca tem um espaço em si mesmo. Acentua, então, o caráter de distensão do presente.

Se com as noções agostinianas o tempo é explicitado como ligado à esfera humana e o presente como intangível em si mesmo, a investigação do tempo como um aparato da História é posta em destaque por Reinhart Koselleck e François Hartog. Este estabelece o conceito de regime de historicidade para entender as mais diversas experiências como tempo. Por meio desse conceito, quer perceber as diferentes articulações que os indivíduos fazem com as categorias do passado, presente e futuro. Já Koselleck quer perceber as diferentes relações que os indivíduos mantêm com seus “espaços de experiências” e seus “horizontes de expectativas”. Ambos percebendo a distensão do presente em relação aos pólos do futuro ou do passado, desnaturalizam a idéia de um tempo único e supra-humano. Acrescenta-se, ainda, o conceito de Bourdieu de que as ações humanas perfazem o tempo, ao contrário da premissa moderna deste como onipotente.
Mas a necessidade desses autores últimos de refutar a questão do tempo moderno, principalmente os historiadores Hartog e Koselleck, está inserida na constituição da disciplina histórica. Melhor dizendo, na constituição da História como disciplina ensinável.

Em seu segundo capítulo do livro Futuro Passado, Koselleck fala sobre a forma como o tempo era encarado, a maneira como o espaço de experiência atingia o presente, auxiliando a formar os horizontes de expectativa dos indivíduos. Diz que a história era a mestra da vida (historia magistra vitae). Nessa noção, a História é importante para perceber os sucessos e insucessos anteriores e para não repeti-los; a História existe para fins pedagógicos. Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides deixa clara a percepção de que seu escrito será suficiente para aqueles que queiram examinar a Guerra que acontecera e para que examinem o que acontecerá da mesma ou de semelhante maneira. Ou seja, seu escrito será um prenúncio do que as gerações futuras enfrentarão.

Hannah Arendt ressalta que essa idéia do passado ser um prognóstico para gerações futuras relaciona-se com uma tentativa dos Antigos de colocar a vida humana no ciclo da natureza. Já que a natureza é um ser-para-sempre, presente constantemente, tanto os poetas quanto os historiadores (como Tucídides) tentam inserir o homem nesse espaço de imortalidade. Tentam trazer das ações e da fala dos homens o que lhes garantiriam espaço ao não-perecível. Assim como Tucídides fala sobre “os homens que recebem de outros”, mencionando a tradição oral, mesmo que explicite dúvidas quanto a total credibilidade dessa tradição, tenta articular os relatos da fala e das ações - inclusive dizendo ter visto algumas delas - para alçá-los ao eterno da natureza, tornando-os possíveis de serem retomados posteriormente da mesma forma como foram expostos; tenta utilizar uma “objetividade” para estipular uma forma de recordação para que os homens e eventos sejam eternos como a natureza. Ainda que tente utilizar certos “métodos” , como a comparação com diversos relatos para formular um “sentido geral” ao seu texto, tentando conferir veracidade, sua recordação não difere de modo substancial das composições de aedos, pois também são baseados nas falas de homens para homens. Todavia, a História da Guerra do Peloponeso destaca a necessidade de conferir a imortalidade à vida humana, através de seus feitos e de seus homens, para tentar alocá-lo junto ao ciclo natural. Para tanto, a intenção de Tucídides é aplicar o passado, todo o espaço de experiência, como um exemplo do que acontecerá de modo, no mínimo, semelhante em um futuro.

A noção de uma historia magistra vitae persiste até o século XVIII, segundo Koselleck. A história é cunhada como responsável por um aperfeiçoamento moral, jurídico, teológico ou político de várias gerações, relativa a reafirmação de uma constância na vida humana, assim como suas transformações sociais e políticas mudam a passos largos. Entretanto, como expõe Paolo Rossi, a transformação que afetaria a história começaria a se formar quando acontece a revolução científica no século XVII, no aparecimento da perspectiva moderna de ciência. Constitui-se, aí, o conceito de progresso.

O conceito de progresso conterá uma idéia de crescimento, do avanço do saber, principalmente pelo desenvolvimento de técnicas para analisar os objetos de estudo, como a experimentação e a observação. Isso tudo contribuirá para a idéia de que a ciência não tem mais limites, como houvera anteriormente. Se em outros tempos, a natureza, a necessidade de o homem estar incluso nela era preponderante, depois dessa revolução científica o homem consegue manusear essa natureza, de acordo com suas próprias finalidades. Não existem mais limitações para esse indivíduo. A constância temporal que a natureza dá é rompida quando esse mesmo homem transforma os produtos naturais em produtos que abastecem suas intenções. Desde então, a história é redirecionada para essa perspectiva em que os limites não existem; uma perspectiva de futuro. Influenciados não só pela revolução intelectual que fora proposta como reformulação dos paradigmas científicos, mas também pelo momento de instabilidade no qual os indivíduos se inseriam, marcado por confrontos religiosos.

Em seu livro Crítica e Crise, Reinhart Koselleck expõe uma relação entre as guerras religiosas, o Absolutismo e o Iluminismo, movimento que originou em seu interior a Filosofia da História. Destacando os pontos principais do trabalho (mesmo que pareça uma análise simplista), o autor entende que as guerras religiosas motivaram os indivíduos a se refugiarem na figura do rei, tornando este todo-poderoso, ainda que seu poder abrisse espaço para o surgimento de grupos que impunhavam concepções morais, supostamente apolíticas, afetando paulatinamente o poder real. Uma dessas formas de exercer uma crítica indireta é a Filosofia da História. Com isso, entende-se que essa Filosofia da História contribuiria para crise posterior, culminando na Revolução de 1789.

A Filosofia da História inaugura um novo modo de interpretar a história, transpondo o caráter de várias histórias e tomando proporção de uma única história. É a partir daqui que se grifa história com um “agá” maiúsculo, indicando sua superioridade e unidade. A história deixa de ser apenas uma compiladora de relatos, característica clara no texto de Tucídides, notável por adaptar as narrativas orais para o escrito, afinal estaria esse grego instalado em uma sociedade predominantemente oral. Destaca-se, neste momento, uma ligação entre os eventos, uma linearidade. Existiria uma explicação que conduziria os eventos em um fio único. Assim como ensina Walter Benjamin, um narrador como Tucídides torna a sua experiência e a de seus ouvintes parte do que é relatado, tornando aquilo que é narrado como pertencente a um momento presente; em suma, não existe um encadeamento explicativo, auxiliando na memorização dos ouvintes e a estes aplicarem os relatos as suas próprias experiências. Ao contrário de um romancista, como um filósofo da história, que tenta descobrir uma linha que integra os relatos esparsos, assemelhada esta linha a uma explicação plausível intelectualmente. Para além disso, a tarefa do filósofo da história é identificar e destacar o que os relatos possuem em seus interiores, obscuros a olhos nus, que irão ajudar em um desenvolvimento de uma humanidade. O papel da exemplificação dos relatos do passado sobre o presente, transformando o passado em prognóstico para o futuro, é diminuído. O importante agora é julgar o passado, segundo preceitos morais vigentes à ocasião, levando em conta o quanto essa experiência passada contribui para um futuro em busca de um fim moral. É na filosofia da História que a concepção torna-se uma eterna marcha para um futuro, para um progresso moral.

A Filosofia da História contribuiria de maneira decisiva para o rompimento da tentativa de imersão da vida humana na natureza, tornando-a um fim em si mesma. Todavia, é só no século XIX que a história é detentora de um método e, com isso, é transformada em uma disciplina passível de ser ensinada.
Stephan Bann estipula o nascimento da história como disciplina ensinável desde quando adquire alguns pressupostos de suas “disciplinas irmãs” como a Medina, o Direito e a Teologia. A história garante, então, um status profissional, delimitado por enquadramento institucional, definindo regras de permanência, além da admissão, segundo alguns pressupostos específicos, para a entrada de novos membros. Mais ainda, constitui um grupo que possui um conhecimento, se não o monopólio de conhecimento, o privilégio do manuseio de certas ferramentas em detrimento de outros indivíduos. Entretanto, quando ocorre a institucionalização da disciplina histórica, as ferramentas distintivas de quem está ou não no ofício passam a não conter nenhum esforço de problematização no mesmo campo histórico, não há uma necessidade de examinar métodos que são dependentes da uma construção humana.

Quando Ranke escreve em seu Prefácio à História dos Povos Germânicos e Românicos quer refutar a perspectiva que a Filosofia da História nutre com a temporalidade, dizendo que lida com o passado de forma neutra e, portanto, é capaz de conceituar de acordo com as idéias pertinentes àqueles que estavam no passado; respeita os indivíduos e os eventos, relacionando-os supostamente como realmente ocorreu. Ao criticar a posição dos filósofos da história, com seus caracteres de juízes, sem qualquer objetividade ou neutralidade para com o passado, Ranke pretende deixar a entender que ele possui essa qualidade de administrador imparcial, naturalizando sua posição de construtor artificial do tempo no qual se relaciona, assim como seus métodos também estarem inscritos na necessidade oitocentista de prevalecimento da análise científica. Além de tudo, se abstém da idéia de que sua construção está imbuída de interesses políticos próprios ao seu próprio tempo.

Anula Ranke a relação que tem com a temporalidade, correspondente a percepção de que os eventos devem ser arregimentados em uma unidade e conectados como uma evolução entre eles. As fontes que Ranke utiliza, como memorais, anais e diários não dispõe os relatos dessa forma como organiza, não é uma reunião feita naturalmente. Estão banhados estes também no conceito de progresso, influenciados assim como os filósofos da história. Delimita aquele que é considerado o primeiro a exercer o ofício de historiador que o cerne da história moderna é o assunto que abordará, isto é, os germânicos e os românicos. Tenta administrar as fontes que possui como o centro do mundo e, por isso, o lugar no qual se pode construir uma história. Agora, continua acreditando em um desenvolvimento sempre ascendente do saber, mas em um saber mais relacionado a interesses políticos. A finalidade moral da Filosofia da História dá espaço para o aprimoramento de uma “raça” distinta. Com esse conceito racial, está relacionada à busca de uma origem de um povo que, no dezenove, está à procura de suas bases, desde bases lingüísticas até bases políticas. Leopold Von Ranke escreve sua História dos Povos Germânicos e Românicos, como deixa claro em seu Prefácio, para atender às necessidades da formação de uma Nação.

Assim como aponta Manoel Salgado Guimarães, a constituição de uma história está ligada diretamente à construção de um cidadão nacional. O discurso histórico rankiano ligado a uma argumentação dos porquês se faz necessária à constituição de uma Nação, legitimando por meio de métodos específicos e, com isso, organizando sistematicamente a memória partilhada por diversos indivíduos. A partir de uma concessão do presente, resgata um passado partilhado por um grupo de homens, transformando-as em um objeto de ensino para esses mesmos homens.

Em suma, tenta organizar Ranke um fio que possui origem, um nascimento dos povos Germânicos e Românicos, como uma experiência em si mesma, e tenta a estipular para que seja natural um futuro desdobramento dessa memória partilhada, um progresso: a Nação. A grande questão que se faz (que inclusive dá luz à importância da historiografia no texto de Salgado) é a naturalização das ferramentas do ofício do historiador, não percebendo que elas também são parte de uma construção humana, como a temporalidade, enxergada de uma maneira a sacralizar o passado para que ele influencie no futuro de um povo.

Neste pequeno texto, tentou-se investigar as relações de Tucídides e Ranke com o tempo, seus objetos de estudo e seus desdobramentos para aspectos importantes no que tange o estudo historiográfico, como a memória, a predominância da aprendizagem, entre outras coisas. É imprescindível ressaltar que não se buscou fazer uma evolução dos termos historiográficos, mas sim ressaltar os desdobramentos e contribuições dos vários regimes temporais, preponderantes para que se tenha hoje consciência do posicionamento como historiadores e das armadilhas e soluções para uma boa escrita da história.






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